- Miguel, Catarina! Já vos disse para não andarem a correr pela casa. Não façam barulho. Olhem o Francisco.
Eram assim os dias de Margarida. Mãe dedicada já só vivia para os seus três filhos. Miguel, o mais velho, tinha treze anos; Catarina, o retrato autêntico da mãe, onde já a beleza se fazia notar, tinha quase doze anos e, por fim, o pequenino Francisco de dois anos e meio.
Mas eram aqueles gritos, aquelas correrias loucas, aquelas gargalhadas inocentes e, até mesmo, aqueles choros de pavor que a faziam sorrir.
A vida de Margarida não era o mar de rosas com que sempre sonhara.
Pedro, aquele bom homem à imagem de todos, era um homem cruel e rancoroso. Culpava Margarida dos seus negócios fracassados; culpava-a das amantes que ele tivera; culpava-a do insucesso escolar de Miguel e dos namoricos de Catarina; culpava-a de Francisco ser um menino tão rabugento. Margarida já não esperava impaciente a chegada de Pedro, agora, refugiava-se na cozinha, nos seus afazeres e desejava, por tudo, que ele chegasse atrasado. A tão delicada mulher até para ler tinha que fazê-lo às escondidas. Numa tarde, enquanto os miúdos se encontravam no colégio, Margarida, estendida no seu sofá vermelho espalhando sensualidade, ia lendo mais um dos seus romances, quando Pedro, chateado, entra pela sala, batendo com a porta, e com raiva de a ver tão bela, deita todos os seus livros pela janela fora. Olham-se nos olhos. E, com um gesto brusco e animalesco ele bate-lhe na face atirando-a para o chão. Ela, lá de baixo, olha-o muito assustada e deixa-se ficar. Não tinha sido a primeira vez que ele lhe batera e, certamente, não seria a última. Mas nada disso interessava, ela tinha três filhos, dependia daquela homem que se dizia ser seu marido e, muito raramente – quando as coisas no trabalho lhe corriam bem – ele lá lhe dizia que a amava. Isso bastava. Essa ilusão de amor era o suficiente para viver e considerar-se uma mulher feliz.
Como a vida das pessoas pode mudar tanto – pensava ela, tristemente.
Ia diariamente ao sótão onde percorria todo o seu passado com exaustão, mas satisfeita. E, todos os dias, via as mesmas fotos, relia as mesmas cartas de amor que tanto lhe escreviam… e invejava aquele seu sorriso, aquele seu olhar e aquela sua beleza que se ia perdendo. Que tempos tão felizes - murmurava.
Mas, naquele sótão, deixava de ser mãe, deixava de ter aquela postura firme e aquele sorriso forçado. Naquele velho e escuro sótão, ela chorava. E, ao fim de tanto tempo, pela primeira vez, ela recordara a sua antiga vida com Pedro. Um amor como tantos outros, mas único por ser o deles. Conheceram-se. Amaram-se e casaram. Pedro era mais velho que Margarida, 8 anos. Ela, deixara o seu curso de psicologia para casar com o seu príncipe encantado. Ele era um homem muito bem sucedido no seu emprego e reconhecido mundialmente. Eram um casal feliz. Desse amor nascera Miguel e Catarina que viveram, até há três anos atrás, num ambiente familiar muito saudável. Francisco, tão doce o pequenino, nascera sem querer; um acidente que, até hoje, Pedro a culpa, também, por isso. Achando-se dono do mundo, que dominava tudo e todos, Pedro começa a jogar e, esse jogo, torna-se num vício, num duro vício que o leva à ruína, à miséria e à sua degradação enquanto homem “bem sucedido” .
Incrivelmente, sem qualquer razão, as consequências daquela inconsciência e imaturidade eram culpa de Margarida que não lhe soubera dar o apoio devido. – dizia ele, constantemente.
De repente, olhou para o relógio dando, de seguida, um salto de um medo incrível com o que lhe poderia acontecer. Estava atrasada. Estava atrasadíssima. As horas, naquele sótão, tinham passado a correr. Descera apressadamente aquelas escadas já tão degradadas. Abriu a porta de casa com cuidado e, devagar, percorreu a casa. Entrou na sala e… que cenário macabro, que horror, ela não queria acreditar. Miguel, que estava com graves lesões por ter defendido o irmão mais novo, abraçava Catarina, que tinha sido gravemente agredida e o pequeno Francisco encontrava-se escondido, por detrás de Miguel. Margarida correu de imediato para os seus três filhos. Parou. Os seus olhos transpiravam rancor, e um ódio imenso fez com que encarasse aquele homem que se encontrava na sua frente. Olhou-o fixamente. E, sem hesitar ele bateu-lhe. Era o que Margarida esperava, era isso que desejava para que realmente tudo acabasse naquele momento. Pegou nos três e foi-se embora.
Seis meses depois e Margarida refizera a sua vida. A sua beleza, mesmo que já muito modificada, fez com que rapidamente arranjasse um trabalho. Um trabalho qualquer, suficiente para pagar uma casa qualquer. Mas, a beleza rapidamente dera lugar ao esforço, à coragem e à luta com que esta mulher ultrapassou os mais árduos obstáculos e, assim, dando, dentro dos possíveis, aquilo a que os seus filhos mereciam.
Mas, agora, os filhos já corriam, já gritavam, já se zangavam. Com eles, já tudo estava bem.
Tinham sido seis meses muito duros, de constantes mudanças: de casa em casa, iam sendo expulsos por não pagarem a renda. Mas, agora, começava haver alguma estabilidade. Para aquela família era o começo de uma nova vida.
Margarida estava, de novo, apaixonada. Tinha recomeçado o seu curso de psicologia, que faltava apenas um ano para o terminar. Nesse curso, conhecera o mais belo dos professores. Chamava-se André. Aqueles olhos, que doçura, que sensualidade. Oh meu deus, assim não vou resistir.
Pensava nele dia e noite – e o mesmo se passava com ele, aquela imagem de deusa grega não lhe saía da memória.
Em casa, os três lá iam dançando à volta da mãe gritando, com um tom de melodia, sem fim: - a mãe está apaixonada, a mãe está apaixonada - e só pararam quando Margarida diz espontaneamente: - Pronto, estou apaixonada, estou. – e logo de seguida se arrepende. E os miúdos gostaram.
Dezembro de 2005, Margarida desce as grandiosas escadas de sua casa. Uma vivenda recheada de bom gosto e onde se respira felicidade. Três anos já se tinham passado desde o dia em que ela tomara a derradeira decisão que mudara para sempre a sua vida. Era, agora, uma mulher feliz, ao lado do homem que amava e na presença dos seus quatro filhos: Miguel, Catarina, Francisco e Henrique, quatro crianças magníficas e cheias de alegria, com uma vivacidade enorme.
Há dois anos tiveram a notícia que Pedro se suicidara por não aguentar a ausência da família e por todo o mal que lhes tinha feito. Os pequenos pensam que ele teve um acidente e assim vão continuar a pensar. Apesar daquele horrível e decisivo dia, Margarida não pretende tirar a imagem de pai herói. Mas o que interessa é o presente. E, hoje, todos dão gargalhadas de encantar, cantam, dançam ao som da bela música que os acompanha nesta vida.
Margarida sente-se protegida com o abraço de André e, junto dele, sorri por olhar em volta e ver que esta é a vida que sempre sonhou. Os dois trocam olhares cúmplices o que faz com que corem e dêem um longo beijo.