domingo, abril 03, 2005

                   - Miguel, Catarina! Já vos disse para não andarem a correr pela casa. Não façam barulho. Olhem o Francisco.
Eram assim os dias de Margarida. Mãe dedicada já só vivia para os seus três filhos. Miguel, o mais velho, tinha treze anos; Catarina, o retrato autêntico da mãe, onde já a beleza se fazia notar, tinha quase doze anos e, por fim, o pequenino Francisco de dois anos e meio.
Mas eram aqueles gritos, aquelas correrias loucas, aquelas gargalhadas inocentes e, até mesmo, aqueles choros de pavor que a faziam sorrir.
A vida de Margarida não era o mar de rosas com que sempre sonhara.
Pedro, aquele bom homem à imagem de todos, era um homem cruel e rancoroso. Culpava Margarida dos seus negócios fracassados; culpava-a das amantes que ele tivera; culpava-a do insucesso escolar de Miguel e dos namoricos de Catarina; culpava-a de Francisco ser um menino tão rabugento. Margarida já não esperava impaciente a chegada de Pedro, agora, refugiava-se na cozinha, nos seus afazeres e desejava, por tudo, que ele chegasse atrasado. A tão delicada mulher até para ler tinha que fazê-lo às escondidas. Numa tarde, enquanto os miúdos se encontravam no colégio, Margarida, estendida no seu sofá vermelho espalhando sensualidade, ia lendo mais um dos seus romances, quando Pedro, chateado, entra pela sala, batendo com a porta, e com raiva de a ver tão bela, deita todos os seus livros pela janela fora. Olham-se nos olhos. E, com um gesto brusco e animalesco ele bate-lhe na face atirando-a para o chão. Ela, lá de baixo, olha-o muito assustada e deixa-se ficar. Não tinha sido a primeira vez que ele lhe batera e, certamente, não seria a última. Mas nada disso interessava, ela tinha três filhos, dependia daquela homem que se dizia ser seu marido e, muito raramente – quando as coisas no trabalho lhe corriam bem – ele lá lhe dizia que a amava. Isso bastava. Essa ilusão de amor era o suficiente para viver e considerar-se uma mulher feliz.

                   Como a vida das pessoas pode mudar tanto – pensava ela, tristemente.
Ia diariamente ao sótão onde percorria todo o seu passado com exaustão, mas satisfeita. E, todos os dias, via as mesmas fotos, relia as mesmas cartas de amor que tanto lhe escreviam… e invejava aquele seu sorriso, aquele seu olhar e aquela sua beleza que se ia perdendo. Que tempos tão felizes - murmurava.
Mas, naquele sótão, deixava de ser mãe, deixava de ter aquela postura firme e aquele sorriso forçado. Naquele velho e escuro sótão, ela chorava. E, ao fim de tanto tempo, pela primeira vez, ela recordara a sua antiga vida com Pedro. Um amor como tantos outros, mas único por ser o deles. Conheceram-se. Amaram-se e casaram. Pedro era mais velho que Margarida, 8 anos. Ela, deixara o seu curso de psicologia para casar com o seu príncipe encantado. Ele era um homem muito bem sucedido no seu emprego e reconhecido mundialmente. Eram um casal feliz. Desse amor nascera Miguel e Catarina que viveram, até há três anos atrás, num ambiente familiar muito saudável. Francisco, tão doce o pequenino, nascera sem querer; um acidente que, até hoje, Pedro a culpa, também, por isso. Achando-se dono do mundo, que dominava tudo e todos, Pedro começa a jogar e, esse jogo, torna-se num vício, num duro vício que o leva à ruína, à miséria e à sua degradação enquanto homem “bem sucedido” .
Incrivelmente, sem qualquer razão, as consequências daquela inconsciência e imaturidade eram culpa de Margarida que não lhe soubera dar o apoio devido. – dizia ele, constantemente.

                   De repente, olhou para o relógio dando, de seguida, um salto de um medo incrível com o que lhe poderia acontecer. Estava atrasada. Estava atrasadíssima. As horas, naquele sótão, tinham passado a correr. Descera apressadamente aquelas escadas já tão degradadas. Abriu a porta de casa com cuidado e, devagar, percorreu a casa. Entrou na sala e… que cenário macabro, que horror, ela não queria acreditar. Miguel, que estava com graves lesões por ter defendido o irmão mais novo, abraçava Catarina, que tinha sido gravemente agredida e o pequeno Francisco encontrava-se escondido, por detrás de Miguel. Margarida correu de imediato para os seus três filhos. Parou. Os seus olhos transpiravam rancor, e um ódio imenso fez com que encarasse aquele homem que se encontrava na sua frente. Olhou-o fixamente. E, sem hesitar ele bateu-lhe. Era o que Margarida esperava, era isso que desejava para que realmente tudo acabasse naquele momento. Pegou nos três e foi-se embora.


                   Seis meses depois e Margarida refizera a sua vida. A sua beleza, mesmo que já muito modificada, fez com que rapidamente arranjasse um trabalho. Um trabalho qualquer, suficiente para pagar uma casa qualquer. Mas, a beleza rapidamente dera lugar ao esforço, à coragem e à luta com que esta mulher ultrapassou os mais árduos obstáculos e, assim, dando, dentro dos possíveis, aquilo a que os seus filhos mereciam.
Mas, agora, os filhos já corriam, já gritavam, já se zangavam. Com eles, já tudo estava bem.
Tinham sido seis meses muito duros, de constantes mudanças: de casa em casa, iam sendo expulsos por não pagarem a renda. Mas, agora, começava haver alguma estabilidade. Para aquela família era o começo de uma nova vida.


                   Margarida estava, de novo, apaixonada. Tinha recomeçado o seu curso de psicologia, que faltava apenas um ano para o terminar. Nesse curso, conhecera o mais belo dos professores. Chamava-se André. Aqueles olhos, que doçura, que sensualidade. Oh meu deus, assim não vou resistir.
Pensava nele dia e noite – e o mesmo se passava com ele, aquela imagem de deusa grega não lhe saía da memória.
Em casa, os três lá iam dançando à volta da mãe gritando, com um tom de melodia, sem fim: - a mãe está apaixonada, a mãe está apaixonada - e só pararam quando Margarida diz espontaneamente: - Pronto, estou apaixonada, estou. – e logo de seguida se arrepende. E os miúdos gostaram.


                   Dezembro de 2005, Margarida desce as grandiosas escadas de sua casa. Uma vivenda recheada de bom gosto e onde se respira felicidade. Três anos já se tinham passado desde o dia em que ela tomara a derradeira decisão que mudara para sempre a sua vida. Era, agora, uma mulher feliz, ao lado do homem que amava e na presença dos seus quatro filhos: Miguel, Catarina, Francisco e Henrique, quatro crianças magníficas e cheias de alegria, com uma vivacidade enorme.
Há dois anos tiveram a notícia que Pedro se suicidara por não aguentar a ausência da família e por todo o mal que lhes tinha feito. Os pequenos pensam que ele teve um acidente e assim vão continuar a pensar. Apesar daquele horrível e decisivo dia, Margarida não pretende tirar a imagem de pai herói. Mas o que interessa é o presente. E, hoje, todos dão gargalhadas de encantar, cantam, dançam ao som da bela música que os acompanha nesta vida.


                   Margarida sente-se protegida com o abraço de André e, junto dele, sorri por olhar em volta e ver que esta é a vida que sempre sonhou. Os dois trocam olhares cúmplices o que faz com que corem e dêem um longo beijo.

15 à janela:

At 4/4/05 4:23 da tarde, Anonymous Anónimo disse:

que bom essa margarida ter encontrado o seu caminho, que bom ter sabido dar o salto...quantas margaridas existem por aí que , por necessidade "acreditam" que são "felizes" que sim, que eles as amam...que a bofetada que levam...não é nada...quantas...vamos espera que todas saibam encontrar o seu mundo de felicidade

 
At 4/4/05 9:24 da tarde, Blogger SweetSerenity disse:

É realmente preciso uma coragem enorme para tomar uma atitude dessas. Como diz a Fátima, quantas não se enganam para que tudo pareça mais correcto; quantas não imaginam um amor diferente para que seja mais fácil a aceitação? O laço emocional é tão grande que é realmente admirável quando cada uma delas decide tomar esse passo nas suas vidas.
No entanto, tenho também pena ou compaixão ou qualquer outra coisa de outro nome, por eles. Tantos não sabem porque o fazem, não sabem porque acontece e também sofrem bastante. E vivem naquela agonia e naquela raiva constante da qual não conhecem a origem.
É um bom texto este. Gostei. Passa uma boa mensagem e muito actual.
Beijo*

 
At 5/4/05 7:18 da tarde, Blogger Pêndulo disse:

Que leias a maria já não é muito bom mas que imites os contos é péssimo.


Vá, pergunta-me como sei que são assim os contos.

:p

 
At 5/4/05 8:39 da tarde, Blogger Daniel Aladiah disse:

Querida Sara
A história ainda não acabou... falas de Dezembro de 2005... :)desejos? Fiquei sem saber se é história ou verdade...deduzo que é literatura e acaba bem.
Um beijo
Daniel

 
At 5/4/05 8:52 da tarde, Blogger Sara Mota disse:

Daniel Aladiah, é história… infelizmente casos como estes há muitos e, nem todos, acabam bem…

 
At 6/4/05 7:22 da manhã, Blogger Micas disse:

E há tantas Margaridas...infelizmente a maioria dos casos não tem assim um final feliz!! Beijos

 
At 6/4/05 12:01 da tarde, Anonymous Anónimo disse:

gostei de passear pelo teu blog. gostei mto dos poemas. beijo

 
At 6/4/05 4:45 da tarde, Blogger VdeAlmeida disse:

Quanto é que reúnes e editas estes teus "pedaços de vida"?
Beijinhos, Sara :-)

 
At 6/4/05 6:07 da tarde, Blogger lique disse:

Uma história que começa triste mas acaba bem, graças a um acto de coragem que nem todas têm. Beijinhos, Sara.

 
At 6/4/05 10:21 da tarde, Blogger Sara Mota disse:

Micas**

gato_escaldado,
=) Volta sempre!! ;)

bird,
eu?! looooool
toma lá um beijinho, vá =D*
(e talvez um dia... quem sabe :)

lique :)**

 
At 7/4/05 10:46 da manhã, Blogger Mitsou disse:

Há por aí muitas, infelizmente. Mas já vai havendo, também, alguns casos de coragem como o desta tua Margarida. Felizmente. Gostei muito. Beijo grande.

 
At 8/4/05 9:16 da tarde, Anonymous Anónimo disse:

Está tão bonito que acabei de ler com lágrimas sorridentes. Que bom quando se acredita no lado bom da vida. Obrigada por essa mensagem de esperança de que tudo pode mudar sem ser tarde demais. Acho que estava a precisar disto mesmo. Um beijo enorme :)

 
At 11/4/05 4:16 da tarde, Blogger Crepúsculo Maria da Graça Oliveira Gomes disse:

Olá adorei o texto e a mensagem que nele contém, escreves muito bem.Bjs

 
At 12/4/05 5:50 da tarde, Blogger Sara Mota disse:

Obrigada!! =))*

 
At 24/6/05 2:59 da tarde, Anonymous Anónimo disse:

O texto está muito bom...super bem escrito! Parabens!

Em tempos conheci 1 "Margarida" assim, linda e que tinha perdido a alegria de viver, tinha deixado tudo para trás em prol de um "homem" que não soube dar valor ao ser humano lindo que tinha a seu lado....após 20 anos de um casamento infeliz e que se degradava visivelmente ano após ano a minha querida e linda "Margarida" conseguiu dar "o salto" e virar a página, após 6 anos de coragem para começar de novo o final não foi tão feliz como o da tua história porque infelizmente a realidade é bastante mais cruel! Mas é em pequenos momentos de felicidade que a minha "Margarida" vai buscar forças para lutar por dias melhores; e isso faz dela uma vencedora!! É por isso que eu tanto me orgulho da minha Mãe!
Obrigada por este texto que transmite uma dura e, infelizmente, vulgar realidade. Ja que não são poucas as pessoas - em particular mulheres - que passam por este drama familiar.

 

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